Ivone Aida Lopes Fernandes Ramos

Entrevista por: Teresa Sofia Fortes

Não sou escritora, sou uma contadora de estórias”. Assim se define Ivone Ramos, uma elegante senhora de 80 anos, com três livros publicados e muitas estórias para contar, fruto de uma memória que, apesar da idade, continua prodigiosa. Ao "asemanaonline", confidenciou, na sua acolhedora sala de estar, o Cabo Verde da sua infância, o seu amor à literatura e a sua opinião muito própria sobre questões da actualidade como, por exemplo, a oficialização do crioulo.

D. Ivone, a senhora tem 80 anos de vida, cheios de estórias e factos, que começaram em Santa Catarina, onde nasceu em 1926. Como foram os seus primeiros anos de vida?

Nasci na ilha de Santiago, em Santa Catarina. Aos cinco anos fui para São Nicolau com o meu pai e a minha mãe que me deixaram ali com a minha avó. Nunca mais vi a minha mãe, ela faleceu. Fiquei, então, com os meus avós. Ali, na Ribeira Brava, fiz a quarta classe e depois vim para São Vicente para estudar o primeiro ano. Mas não me matricularam.

Porquê não a matricularam?

Ora, esqueceram-se. Sabe, vivia com a família do Sr. Gonçalves, que na altura já não vivia em Cabo Verde, mudara-se para Portugal. Eram umas velhotas que não se lembraram de me matricular. De modo que fiquei em São Vicente cerca de nove meses, tendo regressado depois a S. Nicolau. No ano seguinte, voltei ao Mindelo, onde fiz o primeiro ano. Regressei depois a Santiago. Lá fiquei. O meu pai perguntou-me se queria voltar a estudar e eu disse “Não”. Fiquei então seis anos em Santa Catarina, período em que o meu entretenimento era a leitura. O meu pai tinha uma pequena biblioteca e eu lia e relia os livros, quando não tinha novos, junto com um irmão mais novo que frequentava a quarta classe mas já tinha o hábito de leitura. Outras vezes, o meu pai pedia emprestados livros às pessoas graúdas de Santa Catarina e levava para nós lermos. Naquela época existiam os romances de cinco ou seis volumes, mas eu não me importava. Lia e relia, com sofreguidão até. Portanto, a pouca cultura que eu tenho é das leituras que eu fiz durante a minha vida, em particular a infância e juventude.

Lembra-se de alguns dos livros que leu?

Sim. Mas, sabe, eu não me preocupava muito com o nome dos autores, interessava-me mais pelas estórias que lia e relia. Lia policiais, espionagem, estórias que se passavam na América, Inglaterra, França, Espanha, enfim, em vários cantos do mundo. Os reinados, histórias fantasmagóricas. Depois de casada, fui para a Europa e resolvi fazer uma excursão pelo continente. Assim, quando chegava a França dizia: “Oh meu Deus, eu conheço este lugar aqui”. Em Inglaterra foi a mesma coisa, relembrar os sítios que conhecia dos livros. Li também estórias passadas na Rússia, no Egipto, na Argélia ...De maneira que os conhecimentos que tenho adquiri-os através da leitura.

- Hoje, tem publicado os seus próprios livros. Quando é que resolveu experimentar a escrita?

  Sempre gostei de escrever. Imaginava estórias mas eu não tinha dinheiro para comprar papel e caneta. Quando vim viver em São Vicente, na casa do Dr. Gonçalves, que era primo da minha mãe, eu contava-lhe as estórias de Santa Catarina e ele dizia: “Oh Ivone, um dia vais escrever um livro”. Eu ripostava: “Ah, eu lá tenho capacidade para escrever um livro?”. Fui para São Nicolau e, quando regressei a São Vicente, continuei a contar-lhe estórias e ele insistia que eu devia escrever um livro e que o ia chamar “Exilada”. Fiquei com essa ideia na cabeça. E, de facto, mais tarde escrevi um livro, o “Vidas Vividas”, de histórias ligeiras. A seguir, escrevi "Futcera ta cendê na Rotcha", a minha irmã, Orlanda Amarilis é que pôs o nome. Há nesse livro uma estória que tem a ver com a minha infância: é que eu, com os meus 9 ou 10 anos, quando vivia em São Nicolau, dizia sempre que queria ver as feiticeiras. Diziam-me então que às 9 horas elas apareceriam. Por isso, ficava à janela à espreita. E quando via uma luzinha, dizia “Ah, lá vai a feiticeira”. Mas eu nunca vi uma feiticeira.

Era uma época de muitas estórias de feiticeiras e seres estranhos, não é?

Sim, havia muitas histórias, não só em São Nicolau mas também e principalmente em Santiago. Em casa do meu pai havia uma cozinheira que me contava estórias ao fim da tarde. Durante o dia pedia-lhe que me contasse estórias mas ela dizia: “Nou, sô dipos ki sol kamba. Si mi kontou stória antis sol kamba nu ta fika ku odju peladu”. Nos seis anos que estive em Santa Catarina ela contava-me sempre as mesmas estórias mas eu não me aborrecia. Só havia uma estória que eu não gostava e que nunca fixei, que era “Pedro ka tem medo, n’ka medu nada”. Eu detestava a estória porque esse Pedro era mau. Em São Nicolau, a minha avó e uma senhora chamada Nha Arcângela também me contavam estórias. Casei-me, tive os meus filhos, que me pedia para contar-lhes estórias e contava-lhes aquelas estórias que me haviam contado na infância e de que não me tinha esquecido. A seguir, foram os netos a pedirem. Então, porque já começo a esquecer algumas estórias resolvi colocá-las no papel. Já tenho tudo compilado. São 17 ou 18 estórias tradicionais e outras, quatro ou cinco, que eu escrevi.

Quer publicá-las?

Eu quero publicá-las mas ponho-me a pensar e chego à conclusão que os livros não vendem em Cabo Verde. A gente gasta um dinheirão, busca um patrocínio, publica o livro mas quase ninguém o compra. As estórias que tenho compiladas estão escritas, à mão, em crioulo e traduzidas para português. Agora, vou pedir ao meu filho para escrever tudo no computador. Já contactei a Gráfica, que ficou de me dar o orçamento. Mas não vou fazer muitos exemplares porque não sei se vale a pena.

Agora, conta essas estórias aos netos. Como é que eles reagem, tendo em conta que são da era da televisão, dos vídeogames, playstation, etc?

Bem, neste momento, só tenho uma neta ao pé de mim, de quatro anos. Os outros ou estão fora ou já são matulões. Mas essa minha netinha ainda não percebe muito bem essas estórias.

D. Ivone reside há vários anos em S. Vicente.

Sim, mais de 50. Tenho 54 anos de casamento e, antes mesmo de casar, já morava aqui. São cerca de 58 anos de São Vicente. O Carlos Gonçalves, o jornalista, que é meu filho, nasceu cá.

Regressou alguma vez a Santiago e a Santa Catarina em particular?

Sim, da primeira vez só estive na Praia. Da segunda vez, fui até Santa Catarina. Depois que o meu pai faleceu não mais fui à Praia. Agora, não dá para lá ir. O meu marido tem estado adoentado e eu tenho que cuidar dele. Mas eu me lembro de tudo de Santa Catarina. As estórias, as adivinhas, os provérbios, o finaçon ...

Como é que se constrói um casamento de 54 anos, qual o segredo?

O segredo é a união, o amor, a compreensão, a tolerância, a maneira de encarar os factos da vida, a ajuda mútua. Sabe, eu criei com o meu pai e sem a minha mãe porque ela faleceu alguns dias depois do meu irmão mais novo nascer. Estive com o meu pai apenas seis anos, mas durante esse período foi de importância extrema para a minha vida porque ele me ensinou tudo que eu sei. Tudo que aprendi naqueles seis anos valem por uma vida. Porque ele era metódico, dizia-me sempre: “Filha, tens que colocar cada coisa no seu lugar. Assim, quando fores procurar encontras logo”. Eu fiquei com esse hábito, eu ponho cada coisa sempre no mesmo lugar.

Qual era a profissão do seu pai?

O meu pai, que se chamava Armando Napoleão, era proprietário, fotógrafo, entre outras profissões. Estou a escrever um artigo sobre ele porque o meu pai é autor do primeiro léxico do arquipélago de Cabo Verde. Tem o crioulo de todas as ilhas. Sabe, o meu avô era funcionário das Alfândegas e, por isso, estavam sempre a mudar de residência. O meu pai, inclusive, nasceu na Brava. E depois viveu em Santo Antão, Sal, enfim, todas as ilhas.

De modo que eu tenho esse léxico, escrito à mão e, também, os verbetes todos. Porque ele andava com os papelinhos no bolso para anotar as palavras. Junto de cada palavra ele escrevia ST (Santiago), SV (São Vicente) e assim por diante. Quando ele estava muito doente, a última mulher dele deu-me os manuscritos, são dois volumes, e também uma gramática em crioulo. Eu publiquei o léxico em 1990, quem foi fazer o lançamento foi precisamente o actual ministro da cultura, Manuel Veiga.

Distríbui os exemplares entre familiares, meus irmãos (o meu pai teve 36 filhos), dei alguns ao Manuel Ferreira. Fiquei só com um exemplar que me foi roubado por alguém que abusou da minha boa fé. Veio cá em casa falar sobre o léxico, mostrei-lho e quando andava à procura da gramática para lhe mostrar, saiu sorrateiramente, com o léxico escondido debaixo da camisa, eu creio. Felizmente, a minha irmã Orlanda Amarilis tinha o trabalho no computador, mas fiquei sem a publicação original. Não sei se vale a pena publicá-lo outra vez. Bem, eu não concordo com essa mudança de escrita. Agora, escreve-se casa com “k”. Porquê complicar as coisas. Isso até dificulta que as crianças aprendem o português. Mas, como não tenho capacidade nesta área, o melhor é não dizer mais nada.

Concorda com a oficialização do crioulo?

Em parte, não concordo por causa da nova escrita. Não sei, não sou linguista. Mas, a minha pouca cabeça me diz que não devíamos mudar o modo de escrita.

Por outro lado, também há queixas sobre a qualidade do português que se fala actualmente em Cabo Verde. O que acha?

Tenho o meu caderninho em que anoto as falhas e os erros de português que as pessoas, que aparecem na televisão, dão diariamente. São pessoas cultas, com curso superior mas que empregam mal as palavras, pronunciam mal as palavras, principalmente os verbos, não fazem a concordância ... É uma lástima. Julgo que isso é consequência do ensino que estão a receber agora. Acho que há professores mal formados em português. Eu tive bons professores. Na primeira classe, eu tive uma senhora que se chamava D. Arminda Figueiredo; depois tive a D. Clarisse Wahnon na segunda classe; na terceira classe, tive como professora a D. Assumpção, que era portuguesa; e, na quarta classe, tive o Sr. Luís Gominho, que foi um professor excelente. Dava-nos trechos de Júlio Dinis, punha-nos a fazer várias redacções. Aliás, foi ele que me iniciou na leitura, o primeiro livro que li foi “Mil e uma noites”, naquela época não havia livros para crianças. Apanhei o gosto pela leitura, o que me ajudou muito no português.

Além de ficção, D. Ivone Ramos escreve poesia, não é?

Sim. Mas acho que não vou publicar porque aqui em Cabo Verde as pessoas não apreciam poesia, e também não dá dinheiro. Sempre gostei de poesia, desde criança. Eu comecei a fazer poesia em 1949 até há algum tempo. Tenho os poemas guardados.

Já os submeteu à apreciação de alguém?

Não, não os submeti à apreciação de ninguém. Gosto de alguns, um pouco menos de outros. Enfim, creio que são poemas só para mim. Mas gosto muito de poesia desde que uma senhora, que era directora da revista Portugal Feminino, ofereceu à minha mãe um livro de poesia, que foi escrito pela sua filha que falecera. Quando a minha mãe faleceu, fiquei com o livro. Adorava os poemas. Depois escrevi os meus poemas. O último que escrevi foi durante uma viagem a Lisboa.

As mulheres cabo-verdianas hoje têm menos filhos, conforme resultados de um estudo divulgado esta semana. A D. Ivone Ramos teve seis filhos. Como é ter uma casa cheia de filhos?

O meu primeiro filho, o Carlos Gonçalves, cresceu com a tia. Os outros comigo, mais as enteadas. Ter uma casa cheia de gente era natural para mim, pois também cresci num meio assim. O meu pai casou quando eu tinha 13 anos e teve outros filhos com a minha madrasta. Eu tomava conta dos meus irmãos. Até “bumbu” (pôr às costas e segurar a criança com um pano amarrado à frente) todos eles para fazer-lhes dormir. Também ajudei a criar o meu irmão, que nasceu 13 dias antes da nossa mãe morrer. Eu adorava e ainda adoro ter crianças ao pé de mim. Agora, são os netos e os bisnetos. São sensíveis, alegres. Eu acho que as crianças de hoje estão a nascer com uma mentalidade diferente.

Espantam-nos, muitas vezes.

Sim, fazem-nos perguntas difíceis. Olha, a minha neta de quatro anos, por exemplo, gosta de usar a palavra “aliás”. Deve ser efeito da televisão. No meu tempo, em casa só tínhamos um gramofone, grande, de corda. Ouvia sempre os discos que tínhamos lá em casa. Eram americanos, pois o meu pai tinha um irmão nos Estados Unidos que lhos mandava. Mas eu não percebia nada do que cantavam, pois, embora tivesse começado a aprender inglês, desisti. Também dançava mazurca, tango, valsa. Vim então para S. Vicente. Tive rádio em minha casa depois que casei. E até hoje tenho o hábito de estar sempre com a rádio aberta, até a hora de ir dormir, cerca das 10 ou 11 horas. Sabe, tenho necessidade de ouvir sons, pois, depois de ter a casa sempre cheia de gente, durante muitos anos, agora somos só dois, eu e o meu marido, o Nena. Mas não gosto de ouvir as notícias de falecimento.

Porquê?

Sabe, quando a minha mãe morreu eu tinha oito anos. Vestiram-me toda de preto. No dia em que completou um ano sobre o falecimento da minha mãe, tirei o vestido preto, de mangas compridas, e vesti outro, cor-de-rosa. Eu fui passear com uma amiga. Quando regressei a casa, a minha tia disse que eu não devia ter tirado o vestido, que devia vesti-lo por mais seis meses. Respondi: “Não, nunca mais”.

Ouvi dizer que tem umas “mãos de fada”. O que mais faz com essas mãos de fada?

Com 14 anos comecei a aprender a coser, inclusive lá em Santa Catarina fazia roupa para os meus irmãos, embora não muito bem. Depois vim para São Vicente e resolvi fazer um curso de corte e costura porque eu não sabia tirar medidas e fazer os moldes. Trabalhei algum tempo com uma prima. Também aprendi a bordar à máquina. Mas hoje em dia já não bordo à máquina, só á mão, aprendi em São Nicolau com Nha Bia Jóna, que trabalhava no Seminário-Liceu. Quando casei, o meu marido ofereceu-me uma máquina e comecei a costurar para fora. Fazia roupa para festas, bailes .... Mas eu não gosto de copiar, gosto de inventar. Ainda tenho a minha sala de costura, mas há muitos anos que deixei de trabalhar para fora.

Agora, faço colchas de retalhos, as algibeiras das badias e outras coisas mais. Acho que herdei esse espírito inventivo do meu pai. Lembro que, quando eu era criança, ele era aprendiz de um sapateiro. Mas, assim que ele aprendeu a fazer sapatos, largou o carpinteiro. E passou a fazer sapatos para toda a família.
Aqui está uma cópia da entrevista  feita a Ivone por Teresa Sofia Fortes em Julho de 2007
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